O Afeganistão que não queremos por aqui: sem liberdade religiosa não há democracia

Foto: ArmyAmber/PixaBay

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA GAZETA DO POVO | Coluna: Crônicas de um Estado Laico

Autores: Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina

Nesta semana o mundo assistiu, estarrecido, a cenas de cinema sobre a retomada do controle do Afeganistão pelo Talibã. A comoção foi generalizada: desde as pessoas correndo aflitas e desorientadas, o enxame humano tomando o aeroporto internacional, as pessoas se agarrando aos aviões, as que dele caíram, até as mães passando seus bebês pelos muros para que soldados pudessem encaminhá-las a uma vida melhor.

Ao mesmo tempo, enquanto um porta-voz vai “botando panos quentes” na imprensa internacional (leia-se ocidental) atônita, relatos vão chegando de que o endurecimento do regime é avassalador. Opositores executados nas ruas, famílias recebendo a “visita” das patrulhas para identificar moças solteiras que deverão ser encaminhadas imediatamente para se casarem com os soldados, e, por fim, revistas em celulares para ver se havia Bíblias instaladas nos aparelhos. Em caso positivo, conversão ou execução.

Por fim, os líderes do grupo terrorista afirmam: “não esperem uma democracia por aqui” e proclamaram que agora são, novamente, o Emirado Islâmico do Afeganistão. Nada de escolha de líderes (sem liberdade política), nada de espaço para a consciência religiosa diversa do Islã (sem liberdade de crença e religiosa). Quando a democracia cai, todo o sistema de liberdades escorre junto pelo ralo. Foram 20 anos de uma paz construída pelas armas no país asiático, sem, no entanto, conseguir êxito na formação de forças próprias que garantissem um regime de governo democrático.

A liberdade religiosa passa a ser um termômetro sensível do índice de liberdades em geral que determinado povo tem

É uma triste realidade, mas que confirma muitas das teorias em ciência política. E uma delas é que não há “vácuo” no poder. Os interesses conflitantes são sobrepostos, contrapostos, e, se não houver uma saída pacífica para a sua resolução, será pela força. O que mais espanta é como o Ocidente vê isso com olhos de terror, como se este não fosse apenas mais um capítulo que a história confirma existir. A liberdade é uma exceção que justamente o Ocidente criou a partir da civilização cristã.

Foi justamente no alvorecer do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma que se criou o cabedal de valores morais, filosóficos e jurídicos que serviram como argamassa de nosso ordenamento social. Reis, imperadores, senhores feudais, teólogos, filósofos, juristas, artistas, todos contribuíram (e alguns, é fato, abusaram) para este amplo sistema onde há um certo controle de todos sobre todos de forma horizontal, posto que o Cristianismo mostra que não há legitimidade final para que uns dominem sobre os outros, mas, como disse o Cristo, “quem quiser grande seja aquele que serve”. Sob esta lógica está firmada toda a moral que traçou, no Medievo, a ideia dos reis.

A Reforma, conforme seus defensores, buscou corrigir rumos espirituais e, naturalmente, acabou afetando profundamente a vida na pólis. Lutero, em sua doutrina dos Dois Reinos e na teologia da vocação, passa a mostrar que todas as funções – eclesiásticas e seculares – são “santas” em si, e fazem do padeiro, pedreiro, soldado, burgomestre e rei tão sacerdotes como o padre, a freira, o monge, o bispo ou o papa. E este senso de propósito cria uma força imparável para a construção de melhores meios de vida. Era o fim dos estamentos, muito antes da “iluminada” Revolução Francesa.

Este ambiente, embora relativizado pelo iluminismo antirreligioso, que criou o secularismo como que oposto à fé religiosa, construiu a teia para que a democracia moderna pudesse ser tecida, dando o salto espantoso de desenvolvimento que tivemos nos últimos dois séculos. Tudo isto alicerçado na força do propósito existencial conferido pela liberdade de crer e viver sua fé.

Tanto que a liberdade religiosa passa a ser um termômetro sensível do índice de liberdades em geral que determinado povo tem. E, para se entender como isto se mostra verdadeiro, basta aplicar este raciocínio a democracias ou regimes autoritários. A democracia não sofre com a oposição ou contrariedade; pelo contrário, ela se fortalece justamente neste ambiente. Os músculos da liberdade são fortalecidos quando exercitados diariamente, vigiando o espaço garantido para que não haja violações que lhe tirem o vigor. Já no regime autoritário, qualquer contrariedade será reprimida, pois o contraditório é a semente que pode destruir sua força; não há “espaço” para que outros interesses entrem na arena.

Não há nada comparável à religião para informar valores que se fixem no imagético de um povo e lhe provejam o senso de unidade para a busca da felicidade

Ninguém se engane. O conflito civilizacional passa diretamente pelos corredores de igrejas, mesquitas, sinagogas e demais casas de oração. Pois não há nada comparável à religião para informar valores que se fixem no imagético de um povo e lhe provejam o senso de unidade para a busca da felicidade. Como afirma José Ignácio Rubio López em La primeira de las libertades: la libertad religiosa em EE.UU. durante la Corte Rehnquist (1986-2005): una libertad en tensión:

“Onde o direito à liberdade religiosa é negado, todos os outros direitos desaparecem diante da sombra crescente do Estado, e todo o edifício das liberdades é alterado. Mais ainda, anulado este espaço de primeira imunidade, o Estado é tentado a usurpar o lugar de Deus e torna-se instrumento de manipulação ou opressão.”

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