PUBLICADO ORIGINALMENTE EM Gazeta do Povo (Crônicas de um Estado Laico) – autores: Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina
Sempre tivemos dificuldades de captar o belo ou a natureza reflexiva na arte contemporânea. Na verdade, mais que isso; sempre tivemos uma certa refração a esta forma de expressão. O que, muitos dirão, é fruto da nossa própria ignorância – e tendemos, em parte, a concordar. Mas também, ao fim e ao cabo, deparamo-nos com uma profunda desconexão deste tipo de arte com aquela busca intrínseca do ser humano por nela captar a beleza que transcenda e eleve.
É neste espírito que fomos surpreendidos com uma exposição de arte moderna chamada “Ensaios sobre a Dádiva, Expurgo e Promessa”, do artista pernambucano Renato Valle, exibida no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. O início do título lembra a obra do sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss (sobrinho do “pai” da sociologia, Émile Durkheim). Junto da exposição foi também lançada uma revista, chamada Bandido Bom é Bandido Morto, em que o artista explora imagens de “mártires do cristianismo e fundamentalismo religioso executados ao longo da história”.
As “dádivas” são como que “dons” e “contradons”, habilidades humanas em todos os aspectos da vida coletiva, como um “yin–yang social” infinito. Refletem uma visão de mundo gnóstica, através de ciclos eternos e não em uma linha racional histórica que chega a algum determinado ápice, como a revelação bíblica aponta, por exemplo. É uma batalha pelo mindset religioso entre Oriente (deísta) e Ocidente (teísta). Aliás, isso se mostra inclusive nas próprias obras do acervo, combinando preto-e-branco, esculturas simétricas e outros elementos.
Há uma profunda desconexão entre a arte contemporânea e aquela busca intrínseca do ser humano por nela captar a beleza que transcenda e eleve
A exposição mostra uma visão do artista muito imbricada com valores de matriz deísta, como a vida em ciclos e em antagonismos fortes de igual proporção. É meio o que o artista realmente revela sobre sua obra, quando fala de sua compreensão do cristianismo, obra de uma “revolução pacifista” feita por Jesus. Uma visão já tradicionalmente atribuída ao dito “progressismo”, com uma leitura teológica histórico-crítica da vida e obra de Cristo, em antagonismo à ortodoxia teológica do método histórico-gramatical (que exploramos um pouco no nosso artigo da última semana, sobre as críticas ao posicionamento político da Igreja Presbiteriana do Brasil).
Até aí, tudo bem: cada um se expressa de acordo com seu sistema de valores. O problema é a segunda parte do tema. A “dádiva”, aqui, é o sistema religioso-cultural de tradição cristã, com cruzes, crucifixos e imagens do Cristo destacadas das cruzes. A começar por duas colocadas opostas uma à outra, uma delas de cabeça para baixo. O visitante verá, ainda, uma “cabeça” de Jesus transparente, cheia de dinheiro dentro dela, com a escultura rabiscada. Ou, ainda, imagens em branco-e-preto do Cristo crucificado, mas sem a cruz, como se fosse um grupo de bailarinas (o nome desta obra, aliás, é “Cancan”, referência àquela dança francesa que ficou famosa no cabaré Moulin Rouge, em Paris).
Por fim, há uma coincidente (será?) obra de cruzes recheadas de latas de Coca-Cola abertas, manchando as cruzes. Entre outras obras gerando um conjunto interessante de “dádivas”, trocas sociais da religiosidade cristã (vistas sob este ponto de serem manifestações de cultura, talvez com um quê irônico de “primitivas”, como termina a obra de Mauss), com “expurgos e promessas”, tentando problematizar opressão, capitalismo e o que entendem como sistemas retrógrados da emancipação – tendo no cristianismo bíblico e em imagens sagradas para um grupo significativo de cristãos, de tradição católico-romana em maioria, um algoz da iluminação revolucionária.VEJA TAMBÉM:
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Neste sentido, do contínuo blasfemar da fé em atividades ditas artísticas e em nome de algo que deveria ser uma elevação espiritual – a busca da beleza, cuja perda (ou “fim”) foi corretamente criticada pela plataforma Brasil Paralelo, é que o Instituto Brasileiro de Direito e Religião resolveu emitir nota pública de repúdio elaborada por seu Grupo de Estudos e que reproduzimos a seguir, para que o leitor tenha, também, ciência das violações perpetradas na referida exposição.
Nota pública
O Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) vem a público manifestar repúdio à exposição de arte denominada “Ensaios sobre a Dádiva, Expurgo e Promessa”, do autor Renato Valle, no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul – MACRS, localizada na Casa de Cultura Mário Quintana, apresentada pela Secretaria de Estado da Cultura – Sedac.
A exposição de arte acima referenciada utiliza-se de símbolos considerados sagrados para a fé cristã, tais como o crucifixo, a cruz de Cristo, e a manipulação da imagem do próprio Jesus de maneira jocosa e degradante, desrespeitosa à imagem e aos objetos considerados de natureza sacramental para a fé católica.
A Cruz de Cristo é venerada pela Igreja Católica, pois foi através dela que Jesus sacrificou-se para salvar a humanidade e manifestar o amor da Santissima Trindade aos homens; portanto, a Cruz de Cristo é símbolo de salvação e redenção divina que condiciona a salvação dos homens e os convida a vida eterna, conforme o Catecismo da Igreja Católica, § 617:
“‘Sua sanctissima passione in ligno crucis nobis justificationem meruit – pela sua santíssima paixão no madeiro da cruz, Ele mereceu-nos a justificação’ – ensina o Concílio de Trento (499), sublinhando o carácter único do sacrifício de Cristo como fonte de salvação eterna (500). E a Igreja venera a Cruz cantando: ‘O crux, ave, spes unica! – Ave, ó cruz, esperança única!’ (501).
A exposição de arte utiliza-se de símbolos considerados sagrados para a fé cristã, tais como o crucifixo, de maneira jocosa e degradante, desrespeitosa à imagem e aos objetos considerados de natureza sacramental para a fé católica
Além de ser um símbolo sagrado, a Cruz de Cristo, para o católico, é um sacramental, conceituado no Código de Direito Canônico, no cânone 1.166: “Sacramentais são sinais sagrados, pelos quais, de algum modo à imitação dos sacramentos, se significam efeitos sobretudo espirituais, que se obtêm por impetração da Igreja”. No mesmo sentido, dispõe o Catecismo da Igreja Católica, §1.670-1.667:
“Os sacramentais (…) oferecem aos fiéis dispostos a possibilidade de santificarem quase todos os acontecimentos da vida por meio da Graça divina que deriva do Mistério Pascal da Paixão, Morte e Ressureição de Cristo. (…) Por meio deles dispõem-se os homens para a recepção do principal efeito dos sacramentos e são santificadas as varias circunstâncias da vida.”
Os sacramentais, portanto, dentre eles a cruz de Cristo, são um sinal sagrado e detêm importância e significado consoante a consciência de crença e de manifestação religiosa. Denota-se que a exposição de arte apresentou a Cruz de Cristo posicionada na forma invertida, o que também afronta a fé católica, pois o símbolo da cruz invertida tem seu significado a partir da morte do apóstolo Pedro, que a seu pedido foi crucificado de cabeça para baixo, por acreditar não ser digno de morrer como seu Mestre, Jesus Cristo. Nesse sentido, para a Igreja Católica, a cruz invertida, além de ser um sacramental, é sinal de humildade e conhecida como a cruz de São Pedro.
A manifestação cultural religiosa deve fidelidade e respeito as suas liturgias, símbolos, imagens e objetos, de modo a não ferir o que é sagrado
Desta feita, o artista, ao utilizar de maneira distorcida e jocosa os objetos e símbolos sacramentais, ofende a fé cristã, e não apenas a ofende, como macula a honra e a imagem da comunidade cristã, além de desrespeitar a legislação brasileira que protege os lugares de culto da Igreja Católica e suas liturgias, símbolos, imagens e objetos culturais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso legítimo, nos termos do artigo 7.º do Acordo Brasil-Santa Sé (Decreto 7.107/2010).
Neste sentido, reserva-se o direito de conservação e proteção da consciência religiosa, conforme os melhores documentos internacionais de direitos humanos, a Constituição da República Federativa do Brasil, bem como legislação infraconstitucional, que tipifica como crime contra o sentimento religioso o vilipêndio público de ato ou objeto de culto religioso, nos termos do artigo 208 do Código Penal.
Portanto, a manifestação cultural religiosa deve fidelidade e respeito as suas liturgias, símbolos, imagens e objetos, de modo a não ferir o que é sagrado.
Desta feita, o IBDR entende que a exposição de arte denominada “Ensaios sobre a Dádiva, Expurgo e Promessa”, do autor Renato Valle, no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul – MACRS, sob a justificativa incabível de manifestação cultural, afronta os princípios instituídos da fé católica em desrespeito a sua liturgia, simbolos, doutrina e seu estatuto jurídico, além de descumprir a legislação internacional de direitos humanos e a legislação brasileira.
(Assinam a nota os drs. Gabriel Ferreira de Almeida e Silvana Neckel, com revisão dos drs. Warton Hertz de Oliveira e Thiago Rafael Vieira)Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
Jean Marques Regina
Pós-graduado em Liberdade Religiosa (Mackenzie com estudos em Oxford e Coimbra) e Teologia (Ulbra), colunista de diversos blogs protestantes. Jean também é advogado de milhares de igrejas no Brasil e Co-autor, com Thiago Rafael Vieira, da obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas (1ª, 2ª e 3ª edição). Advogado Aliado da Alliance Defending Freedom (EUA), maior entidade de juristas cristãos do mundo. Fellow Alumnus da Acton Institute (EUA). Co-autor com Thiago Rafael Vieira da obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas (1ª, 2ª e 3ª edição). É 2º Vice-Presidente de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).veja + em Crônicas de um Estado laico
Thiago Rafael Vieira
Pós-graduado em Direito do Estado (UFGRS), Liberdade Religiosa (Mackenzie com estudos em Oxford e Coimbra) e Teologia (Ulbra), colunista de diversos blogs protestantes e articulistas em diversas revistas acadêmicas. Thiago também é advogado de milhares de igrejas no Brasil e Co-autor, com Jean M. Regina, da obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas (1ª, 2ª e 3ª edição). Em 2019, foi um dos delegados do Brasil na Universidade de Brigham Young (Utah/EUA) no 26º Simpósio Anual de Direito Internacional e Religião, evento com mais de 60 países representados. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião – IBDR.