O Brasil inteiro está comentando a recente decisão do STF favorável às testemunhas de Jeová, no caso envolvendo a recusa de transfusão de sangue. Para nós, nenhuma surpresa: já defendíamos os direitos das testemunhas de Jeová de forma idêntica ao que o STF decidiu, na primeira edição da nossa obra Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas, de 2018, conforme as páginas 92-93 e 122-123 da 4.ª edição:
“Por exemplo, se um determinado fiel suplica pela efetivação da garantia constitucional de liberdade religiosa em detrimento de sua própria vida (como no caso de testemunhas de Jeová, diante da recusa de transfusão de sangue), quando maior e plenamente capaz, estamos diante da autodeterminação derivada do princípio da dignidade da pessoa humana preservada. Senão vejamos, no caso concreto de prescrição médica por via de tratamento contrário à convicção religiosa do paciente, embora lhe possa preservar a vida, retira do fiel a dignidade proveniente de sua crença religiosa, tornando o restante de sua existência desnecessária, ou até mesmo uma afronta ao Deus de sua fé! Nesse particular, o Estado, em nenhuma de suas facetas, poderá tolher o direito de escolha do fiel, direito fundamentado na preservação de sua dignidade, pois seria uma clara afronta ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. (…) Na esfera individual, quando o fiel maior e plenamente capaz exercer a opção pela liturgia imposta por sua convicção íntima de fé, o Estado, ao não intervir, está cumprindo o preceito constitucional e fundamento republicano da dignidade da pessoa humana, pois, para este fiel, só existe vida com dignidade se perfeitamente conformada pelos valores de seu credo religioso. Viver sem essa conformação implicaria total ruptura de seu núcleo de valores, os quais justificam sua existência. Cumpre destacar a noção de que, como seres humanos racionais, a vida não se restringe à concepção biológica, compreendendo, também, a concepção moral. A mesma ponderação entretanto, não é válida quando o fiel for incapaz.”
Além disso, em 2019, publicamos até um vídeo no YouTube sobre o assunto, defendendo a mesma tese que o STF agora confirmou:
Mas, para quem não acompanhou o caso, propomos o seguinte exercício: de um lado, temos o direito à vida, o direito fundamental que sustenta todos os outros; do outro, a liberdade religiosa, que sustenta as crenças mais profundas de uma pessoa. Quando esses dois direitos entram em rota de colisão, o que o Estado deve fazer?
Em 25 de setembro, o STF decidiu, por unanimidade, que as testemunhas de Jeová têm o direito de recusar transfusões de sangue por motivos religiosos. Mais do que isso: o Estado é obrigado a garantir tratamentos alternativos, mesmo que isso signifique buscar hospitais em outras localidades. No entanto, esse direito não pode ser estendido aos filhos menores. Dois casos específicos foram analisados para embasar essa decisão. No primeiro, uma paciente do Amazonas recusou uma cirurgia que exigia transfusão de sangue, mas o procedimento alternativo, sem o uso de sangue, só estava disponível em outro estado, e agora o governo seria obrigado a cobrir as despesas. No segundo caso, uma paciente se recusou a assinar um termo de consentimento para o uso de transfusões durante uma cirurgia, o que acabou levando a questão até o Supremo.
Quando há um choque entre direitos fundamentais, mesmo quando o direito vetor à vida está em jogo, é preciso realizar uma ponderação adequada e cuidadosa, restringindo o mínimo possível a liberdade religiosa
O STF estabeleceu algumas regras de repercussão geral que servirão de referência para futuros casos. Eis as principais:
RE 979742
1. As Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimentos médicos que envolvam transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa.
2. Em respeito ao direito à vida e à saúde, têm direito a procedimentos alternativos disponíveis no SUS, podendo, se necessário, buscar tratamento fora de seu domicílio.
RE 1212272
1. É permitido ao paciente, plenamente capaz, recusar-se a submeter-se a tratamentos de saúde por motivos religiosos. Essa recusa deve ser inequívoca, livre, informada e esclarecida, podendo ser expressa por diretiva antecipada de vontade.
2. Caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso, e a equipe médica concorde, é possível realizar um procedimento médico sem a transfusão de sangue ou outra medida excepcional, conforme a decisão inequívoca e livre do paciente.
Desta vez, o STF acertou em cheio; e, quando eles acertam, precisamos reconhecer.
Ainda há uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental em andamento no STF, a ADPF 618, sobre o mesmo tema, na qual o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) participa como amicus curiae. Esperamos que essa ADPF tenha o mesmo desfecho dos recursos anteriores.
As teses fixadas pelo STF mostram como funciona a laicidade colaborativa brasileira. Quando há um choque entre direitos fundamentais, mesmo quando o direito vetor à vida está em jogo, é preciso realizar uma ponderação adequada e cuidadosa, restringindo o mínimo possível a liberdade religiosa e, principalmente, garantindo a integridade do inviolável foro íntimo do religioso, protegido pelo direito absoluto à liberdade de crença.
Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos