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Publicado originalmente na Gazeta do Povo
É comum remetermos a definição de liberdade aos gregos. Atenas e suas assembleias. Nada mais romântico. Mas basta o leitor deixar de “dar Google” ou ouvir influencers da vida para se espantar com a verdade sobre as liberdades. Na Grécia Antiga, o que tínhamos era uma liberdade política para os homens ricos, e só. Aliás, mesmo a vida desses homens ricos era vigiada no detalhe. Leiam A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos, de Benjamin Constant, ou A cidade antiga, de Fustel de Coulanges, que escamas cairão de seus olhos.
As liberdades individuais foram conquistadas ao longo de milênios. Foram vivenciadas primeiramente pelo povo hebreu, de Josué até o exílio babilônico, e depois retomada nas palavras de Jesus de Nazaré e do apóstolo Paulo. O caminho é longo para chegarmos ao conceito e abrangência da liberdade que temos hoje. Passa por Agostinho de Hipona, Boécio, Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham, Hugo Grotius, John Wycliffe, Martinho Lutero, João Calvino, Johannes Althusius, Roger Willians, James Madison, Thomas Jefferson, Montesquieu, John Locke, Pierre Bayle, John Stuart Mill, Alexis de Tocqueville e tantos outros. Isso sem falar nas muitas batalhas travadas e no sangue derramado nos campos do baixo medievo e do Estado moderno. Entretanto, a humanidade tem memória curta e preguiça de estudar história. A liberdade-meio para todas as outras, a de expressão, vem sendo mitigada paulatinamente nos últimos anos, a ponto de um documentário da Brasil Paralelo ser censurado antes mesmo do lançamento por ministros do TSE que nem o assistiram. Censuraram pela capa. Isso mesmo, pela capa. O fim da várzea.
Assim como a liberdade-meio vem apanhando diariamente, a primeira das liberdades vem sofrendo jabs de esquerda dia sim e o outro também. O jab mais recente veio do Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Norte (CBMRN). E no estilo Shoryuken do Ken (quem jogou Street Fighter III sabe).
A objeção de consciência é um direito constitucional, garantido em todos os tratados internacionais que tratam de direitos humanos
Todos sabem que a objeção de consciência é um direito constitucional previsto no artigo 5.º, VIII da Constituição brasileira, bem como em todos os tratados internacionais de direitos humanos. Quer dizer, todos menos o CBMRN – e o pior: não por falta de aviso!
No início deste ano, especificamente no dia 14 de fevereiro de 2022, um cadete do curso de formação de praças ingressou no Judiciário para ver seu direito constitucional à objeção de consciência garantido. O cadete participou do concurso público para o CBMRN, regido pelo Edital 001/2017, concorrendo ao cargo de soldado do quadro de praças bombeiro militar. Fez a prova objetiva em um domingo de 2017, bem como avaliação médica e odontológica em 2021), sendo aprovado em ambas. Também restou aprovado no exame de condicionamento físico (a terceira etapa da seleção), na avaliação psicológica (a quarta etapa) e na investigação social e de vida pregressa (a quinta etapa). É, caro leitor, não é fácil ser bombeiro militar no Rio Grande do Norte. Continuando o longo caminho para realizar seu sonho, o candidato a bombeiro chegou até a sexta e última etapa: o curso de formação, realizado de segunda a sábado e em alguns domingos.
Aqui o longo caminho virou calvário. Ocorre que o cidadão é adventista, ou seja, tem o compromisso religioso e de consciência de guardar os sábados. Para resumir a celeuma, o aluno teve seu pedido de transferência das aulas dos sábados ou de prestação alternativa negado em todas as instâncias, tendo de se socorrer ao Judiciário por meio do Mandado de Segurança 0806528-51.2022.8.20.5001, que tramitou na 2.ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Natal.
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Resultado? Levou a liminar que restou confirmada em sede de sentença, no dia 28 de maio de 2022. Afirma a decisão: “Desse modo, a diferença no tratamento dispensado ao impetrante em relação aos demais candidatos se mostra compatível com a ordem constitucional, justificando-se, de per se, a distinção, não havendo ofensa à regra isonômica, antes pelo contrário, se o Estado não deve, nem pode, realizar opção religiosa por sua laicidade, também não pode obstruir o exercício da liberdade de cultos, desde que haja possibilidades em outros horários, portanto, prestação alternativa, algo que não discrepe do razoável”. E, ao fim, a sentença: “Pelo acima exposto, ratifico a liminar deferida e CONCEDO A SEGURANÇA, anulando a decisão administrativa que desligou o impetrante do CURSO DE FORMAÇÃO DE PRAÇAS – CFP e determino a reintegração do mesmo no referido curso, prosseguindo às demais etapas, nos termos postulados à inicial”.
O leitor haverá de pensar que o CBMRN aprendeu a lição. Não, não aprendeu. Já depois da decisão acima citada, a mesmíssima corporação lançou, no Diário Oficial do Estado do RN de 25 de outubro de 2022, o edital de concurso público para o provimento de vagas de soldado do quadro de praças bombeiros militares. Dentre as disposições do certame, o item 11.5 disciplina que “Dado ao regime de dedicação exclusiva exigido dos bombeiros militares e consistindo a profissão bombeiro militar em serviço essencial para a sociedade, não será admitida qualquer excepcionalidade ao exercício da função por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”.
Não é o fim da picada? A objeção de consciência é um direito constitucional, garantido em todos os tratados internacionais que tratam de direitos humanos; o próprio Corpo de Bombeiros do RN já levou uma bordoada na cabeça em forma de sentença reafirmando isso em maio desse ano, e o que ele faz? Cinco meses depois, publica um edital violando os direitos constitucionais dos sabatistas! Parece até piada. O Grupo de Estudos Constitucionais e Legislativos (GECL) do IBDR emitiu brilhante parecer acerca dessa patacoada do CBMRN com uma irrefutável demonstração técnico-jurídica.
A verdade é que o Brasil está pegando fogo e, lá no Rio Grande do Norte, nem nos bombeiros podemos confiar…
Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
Thiago Rafael Vieira
Pós-graduado em Direito do Estado (UFGRS), Liberdade Religiosa (Mackenzie com estudos em Oxford e Coimbra) e Teologia (Ulbra), colunista de diversos blogs protestantes e articulistas em diversas revistas acadêmicas. Thiago também é advogado de milhares de igrejas no Brasil e Co-autor, com Jean M. Regina, da obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas (1ª, 2ª e 3ª edição). Em 2019, foi um dos delegados do Brasil na Universidade de Brigham Young (Utah/EUA) no 26º Simpósio Anual de Direito Internacional e Religião, evento com mais de 60 países representados. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião – IBDR.
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Jean Marques Regina
Pós-graduado em Liberdade Religiosa (Mackenzie com estudos em Oxford e Coimbra) e Teologia (Ulbra), colunista de diversos blogs protestantes. Jean também é advogado de milhares de igrejas no Brasil e Co-autor, com Thiago Rafael Vieira, da obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas (1ª, 2ª e 3ª edição). Advogado Aliado da Alliance Defending Freedom (EUA), maior entidade de juristas cristãos do mundo. Fellow Alumnus da Acton Institute (EUA). Co-autor com Thiago Rafael Vieira da obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas (1ª, 2ª e 3ª edição). É 2º Vice-Presidente de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).