Posso falar mal da religião dos outros; tentar impedir isso é que é “discurso de ódio”

Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina

Publicado originalmente na Gazeta do Povo

No mundo atual, onde a liberdade religiosa é valorizada (pelo menos sob o ponto de vista constitucional, legal e doutrinário) como um dos pilares da sociedade democrática, é natural que as crenças das pessoas religiosas colidam, muitas vezes dando origem a tensões e choques. Esses confrontos, que podem ser vistos como um verdadeiro mercado de ideias religiosas, destacam a complexidade da coexistência de diferentes sistemas de crenças. Passemos a explorar o embate entre os princípios religiosos e a necessidade de preservar a liberdade de fé.

No coração da religião: a moralidade

Em qualquer religião, o aspecto central que a define é a sua moralidade, isto é, seus valores morais. É essa moral que serve como alicerce sobre o qual se constrói o culto religioso e a relação entre o crente e sua divindade, bem como seus próprios dogmas. Essa relação não fica restrita ao âmbito pessoal, mas se manifesta no espaço público, dando origem ao que chamamos de “fenômeno religioso”.

O fenômeno religioso: crenças individuais na esfera pública

O fenômeno religioso emerge das crenças individuais para ganhar vida no espaço público. Nesse contexto mais amplo, vemos a promoção e a manifestação de valores e princípios religiosos, muitas vezes mais evidentes em religiões como o cristianismo. Essa manifestação pública cria um potencial significativo para conflitos e choques, especialmente quando confrontada com outras tradições religiosas e sistemas de crenças, que muitas vezes são opostas.

A imposição de valores religiosos por meio de leis ou processos judiciais é uma ameaça à liberdade religiosa, bem como às liberdades de crença, consciência e pensamento e ao próprio Estado laico

Conflito de valores religiosos: Teoria moral de primeira ordem

Quando a liberdade religiosa é respeitada em um ambiente de tolerância, é comum ver os valores de uma religião, que possui determinados valores, entrarem em choque com os valores de outra religião, que podem ser diametralmente opostos. Esse conflito entre valores religiosos é frequentemente referido como “teoria moral de primeira ordem”, como ensina André Ramos Tavares em importante artigo sobre o assunto. Isso reflete a tendência natural das religiões de rejeitar outras visões de mundo. No contexto religioso, isso significa que uma religião específica acredita que está totalmente certa, enquanto considera as outras religiões como erradas ou inválidas, por óbvio.

Tensão intrínseca nas religiões universalistas

A tensão entre religiões é uma característica intrínseca, especialmente nas religiões universalistas, entre elas o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, que buscam alcançar fiéis em todo o mundo, independentemente de diferenças pessoais. Essas religiões não apenas expressam suas próprias visões do que é verdade, mas também incentivam seus seguidores a viverem de acordo com esses princípios e a convencerem outros de que sua fé é a única verdadeira, como leciona Tavares no mesmo artigo acima citado, bem como o Supremo Tribunal Federal, em diversas decisões, entre elas o RHC 134682.

O risco da intromissão estatal

Não podemos esquecer que, em um mundo onde a liberdade religiosa é valorizada, é inaceitável que o Estado intervenha nos princípios morais que constituem as bases das religiões, buscando limitar ou moldar o que elas podem expressar, bem como interferir em seus dogmas e suas visões espirituais de inferno, anjos, santos e demônios. A imposição de valores religiosos por meio de leis ou processos judiciais é uma ameaça à liberdade religiosa, bem como às liberdades de crença, consciência e pensamento e ao próprio Estado laico. Não se pode esquecer que Estado laico significa, antes de mais nada, que o Estado não pode interferir nas crenças e visões espirituais das pessoas, líderes religiosos e religiões.

VEJA TAMBÉM:

O meu direito fundamental não termina quando começa o do outro

Uma liminar contra Deus no Distrito Federal

Existe “racismo religioso” no Brasil? Uma conversa com Patthy Silva

Preservando a essência da religião

Permitir que o Estado interfira nos dogmas religiosos e em questões espirituais coloca em risco a própria essência da religião, podendo eliminar o fenômeno religioso em si, ou resultar em um monismo: o monismo da religião politicamente correta e fofa. A liberdade de abraçar e espalhar crenças religiosas é fundamental e não deve ser comprometida. Qualquer interferência extrema resultaria na supressão da religião e na violação da dignidade dos fiéis que a seguem. É crucial entender que é impossível exigir a incorporação de valores de uma doutrina rival sem descaracterizar ou interferir na própria fé. No cristianismo, por exemplo, a liberdade de proclamar e expressar a crença é vivida com paixão devido à história e aos princípios centrais dessa fé.

Um caso histórico: Cantwell v. Connecticut

Uma decisão internacional importante, que é um dos julgados-referência na Suprema Corte norte-americana e destaca os conflitos entre religiões, é Cantwell v. Connecticut. Nesse caso, os Cantwell, membros das Testemunhas de Jeová, estavam realizando pregações em um bairro predominantemente católico em New Haven, no estado de Connecticut. Nas pregações, declaravam as outras religiões como inimigas, em especial a Igreja Católica. A Suprema Corte, em decisão unânime, afirmou que eles estavam protegidos pela Primeira Emenda da Constituição, reforçando a importância de preservar a liberdade religiosa.

Conclusão 1: o valor fundamental da liberdade religiosa

Em um mundo diversificado em termos de crenças, é essencial reconhecer e preservar a liberdade religiosa como um direito fundamental. Isso implica respeitar tanto a liberdade de acreditar quanto a liberdade de agir de acordo com essas crenças, desde que não haja danos à sociedade sob o ponto de vista objetivo, conforme decisões do STF (RHC 134682, HC HC 82424), da Suprema Corte americana (Cantwell v. Connecticut) e as diversas decisões internacionais, como as Resoluções 1510 e 1805 do Parlamento Europeu e o Plano de Ação de Rabat, entre tantos outros documentos internacionais que você encontra no excelente artigo “Criticar o sagrado do outro é um direito fundamental”, de nosso confrade de IBDR Guilherme de Carvalho.

Permitir que o Estado interfira nos dogmas religiosos e em questões espirituais coloca em risco a própria essência da religião, podendo eliminar o fenômeno religioso em si, ou resultar em um monismo: o monismo da religião politicamente correta e fofa

Por exemplo, o Plano de Ação de Rabat, de 2012, sobre a proibição da incitação ao ódio nacional, racional ou religioso, que integra o relatório anual do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, definiu: “O direito à liberdade de expressão implica que precisa ser possível escrutinizar, debater abertamente e criticar sistemas de crença, opiniões e instituições, incluindo religiosas, desde que não se advogue ódio que incite à violência, hostilidade ou discriminação contra um indivíduo ou grupo de indivíduos”. A restrição à liberdade de pregar, ensinar e expressar dogmas está na ilegalidade de condutas que incitem à violência, hostilidade ou discriminação contra um indivíduo ou grupo de indivíduos, e discriminação implica em inferiorização de pessoas, nunca de sistemas ideológicos, filosóficos e religiosos, somada à supressão de direitos fundamentais. O que não se enquadrar nisso não pode ser restringido.

Conclusão 2: quando a verdade é outra

A história e a jurisprudência deixam claro que a supressão dos direitos das pessoas religiosas de pregar ou disseminar suas crenças religiosas é inaceitável, e a proteção desses direitos é essencial para a coexistência pacífica em um mundo cada vez mais diversificado em termos de religiões e crenças.

Dito em miúdos: você pode não gostar ou ficar extremamente chateado que um pastor, por exemplo, ensine, em um culto, que sua religião é de demônios. Mas processá-lo é contra tudo que se conhece em matéria de direitos humanos, e aproxima-se muito mais do discurso de ódio que as falas do próprio pastor, pelo simples fato de que o pastor está ensinando, em sua igreja, sobre religiões, enquanto você o estaria processando diretamente para suprimir o direito dele de ser religioso e viver segundo aquilo em que ele acredita. Se por um lado ele ofende a religião de forma genérica, por outro você tentaria usar o Estado para suprimir o direito pessoal dele (e também o dos fiéis da igreja) de ter uma religião. Sem falar que, hoje, é você quem está pedindo que o Estado interfira nos conceitos espirituais dos outros. Amanhã, alguém, usando essa jurisprudência, poderá pedir para que o Estado interfira nos seus.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos

Rolar para cima