Publicado originalmente na Gazeta do Povo
Seguimos em nossas análises baseadas em Robert Dahl e seu Sobre a Democracia, e como esta palavra (entre tantas outras) precisa ser resgatada em seu significado real – não o imaginado por muitos adeptos da tática orwelliana de novilíngua.
No capítulo 6 do livro, Dahl fala sobre a necessidade da igualdade política sob o viés da igualdade intrínseca. O autor cita o preâmbulo da Declaração de Independência dos Estados Unidos e refere que a igualdade não é assim tão óbvia para a maioria das pessoas, pois nos próprios Estados Unidos existiam escravos e desigualdade em relação às mulheres. Por outro lado, Dahl lembra que Alexis de Tocqueville, em 1835, constatou que o grau de igualdade no EUA ainda era muito maior que na Europa.
Diz o pensador francês: “um fato providencial, dotado de todas as características de um decreto divino: é universal, é permanente, escapa sempre a qualquer interferência humana; todos os acontecimentos e todos os homens contribuem para seu progresso”.
Mas o que significa a tal “igualdade intrínseca”? Dahl afirma que consiste na igualdade de direito por parte de todos a terem o direito à vida, à liberdade, à felicidade e a outros bens e interesses fundamentais. Tal princípio é fundamental para o governo de um Estado.
Explicando a igualdade, o autor refere que, pensando em bases religiosas, a maioria acredita que todos somos filhos de Deus, com exceção ao hinduísmo, dizendo que, explícita ou implicitamente, a maioria dos argumentos morais e a maioria dos sistemas éticos pressupõe este princípio. Por fim, demonstra que o princípio da igualdade intrínseca se justifica com base na moralidade, na prudência e na aceitabilidade.
Entregar o poder a um grupo elitizado de homens, inclusive “especialistas”, resultará em corrupção; basta olhar para a história
O capítulo 7 Dahl reserva para a chamada competência cívica na igualdade política. Começa lembrando dos “tutores” de Platão, ou seja, da entrega do governo nas mãos daqueles que, acredita-se, “seriam” muito mais bem preparados, ou seja, os conhecidos e hoje celebrados “especialistas”. Os defensores dos especialistas não propõem uma desigualdade em favor deles, mas alegam que eles governariam melhor, para o bem de todos, a partir de seus conhecimentos. Hoje é o que poderíamos chamar de tecnocracia. Em muitas coisas decidimos a partir do conselho dos especialistas: aliás, é o que mais estamos vendo na pandemia. Por que, então, não entregar o governo na mão dos especialistas? Ensina Dahl que “governar não é uma ciência como a física, a química, ou, como em certos aspectos, a medicina (p. 86)”. Governar exige julgamentos éticos, ou seja, vai muito além da ciência pura e simples. Exige equilíbrio e, muitas vezes, ponderar, escolher e decidir entre muitos interesses legítimos.
Pensando em políticas públicas, para se alcançar um fim sempre será necessário encontrar o meio a ser utilizado. Um exemplo: quais seriam os melhores meios de cuidar dos pobres? Cuidar dos pobres é a política pública fim, mas como fazê-lo é o meio, e depende de uma decisão política, lastreada em diversas situações e fatos que não são trazidos pelos especialistas. Por fim, Dahl demonstra que o conhecimento é uma coisa, mas ter o poder de ação e decisão é outra, bem diferente. Entregar o poder a um grupo elitizado de homens, inclusive “especialistas”, resultará em corrupção; basta olhar para a história. Lembremos de Lord Acton: “o poder absoluto corrompe o homem absolutamente”.
Assim, nosso autor segue e fuzila com a seguinte pergunta: “se não devemos ser governados por tutores, então quem deveria nos governar?” Nós mesmos. Todos devem ser considerados aptos a participar do processo democrático de governo do Estado, salvo raras situações, previamente consignadas em lei. Citando Mill, Dahl lembra dos trabalhadores no século 19. Será que seus pleitos eram vistos pelos parlamentares ingleses com olhos de um trabalhador ou de um empregador? Conclui: “O corpo dos cidadãos num Estado democraticamente governado deve incluir todas as pessoas sujeitas às leis desse Estado, com exceção dos que estão de passagem e dos incapazes de cuidar de si mesmos”. Evidentemente os especialistas são importantes no governo democrático, mas como auxiliares e não como uma elite governante ou uma tecnocracia.
Assim, quais são as instituições políticas necessárias para um país democrático? Para Dahl, são: funcionários eleitos; eleições livres; liberdade de expressão; fontes de informação diversificadas; autonomia para as associações; e cidadania inclusiva. Aqui, Dahl traz o conceito de Poliarquia, o governo de muitos, para se referir a uma democracia representativa moderna. A poliarquia é necessária para a democracia em escala do país, bem como para a representação dos cidadãos. Por isso o voto por meio de eleições livres, justas e frequentes é tão importante. A frequência é necessária para o recall daqueles que não atendem as expectativas. Dahl explica a importância da liberdade de expressão, no sentido de todos os cidadãos terem voz e capacidade de influenciar nos programas de planejamento das decisões de governo, além de ter diversas fontes de informação, para não existir manipulação e assim possibilitar-se a participação efetiva no planejamento público. Por fim, revela a importância das associações para exercer pressão nos representantes, quando necessário.
No fim das contas, a representação é a saída e tem seu preço, especialmente quando das más escolhas de seus representantes. Dahl encerra seu texto dizendo da improbabilidade de a democracia passar ao nível internacional, lembrando da necessidade de governos locais, como os munícipios, até em países pequenos. Por fim, diz: “Em quase todas (talvez todas) as organizações por toda parte há algum espaço para alguma democracia. Em quase todos os países democráticos há bastante espaço para mais democracia”.
É justamente por causa deste conceito que retornamos, como no texto da semana passada, à necessidade de entender o poder – construtivo ou corrosivo – das palavras enquanto símbolos que carregam sentidos. A democracia, diz Jacques Maritain em sua obra O Homem e o Estado, é uma “organização racional das liberdades fundadas sobre a lei”. Cumpre-nos sempre lembrar que o Estado é um aparelho, um sistema organizado pela sociedade política para servir de facilitador da busca pela felicidade terrena. Jamais nos deixemos enganar pela ótica de que o Estado é a suprema realidade, e nós apenas servimos se formos partes de sua engrenagem.
Lembrem: palavras, sempre elas, devem estar bem colocadas a serviço do bem comum.