Há quem repita, com a devoção de um fiel diante do altar, que “o Estado é laico”. Mas, ao contrário do que parece, não se trata de fé em nosso sistema constitucional, e sim de um bordão usado para empurrar a religião de volta às catacumbas – como quem varre para debaixo do tapete aquilo que incomoda.
Nessa lógica, crer e participar da vida pública seria quase um delito; levantar a voz da fé, um ato de insubordinação contra a nova polis que desejam fundar: sem o Deus dos cristãos, sem altar, sem memória.
A história, contudo, é cíclica. Foi exatamente assim na França revolucionária do século XVIII: o problema não era a religião em si, mas o cristianismo, que precisava ser varrido da cena pública. Religião, afinal, eles também tinham – a “religião da razão”, a deusa erguida no altar de Notre Dame. Qualquer semelhança com o presente não é coincidência.
O problema é que a realidade é menos dócil do que gostariam os engenheiros sociais. A religião resiste. Resiste como sempre resistiu, sobretudo o cristianismo – que não sucumbiu ao Império Romano, não foi extinto pelos vikings, nem sepultado pela peste bubônica.
Por que sucumbiria agora? Ela insiste em reaparecer: nas praças, nos parlamentos, nas universidades e até mesmo nas conferências ambientais.
Teima em lembrar que não é detalhe privado, mas parte essencial da vida coletiva. É raiz da cultura, alma da política, fundamento da própria sociedade. E, por mais que repitam o mantra, ela sempre retorna – com a obstinação de quem sabe que faz parte do tecido da história e não pode ser apagada.
Veja o caso da COP 30, marcada para Belém. Antes das negociações diplomáticas, antes dos gráficos coloridos sobre aquecimento global, antes mesmo dos relatórios técnicos recheados de siglas e porcentagens, houve uma vigília.
Não foi uma vigília qualquer, mas um ato inter-religioso, relatado pela própria Agência Brasil. Lideranças das religiões afro-brasileiras, budista e católica reuniram-se para clamar por consciência ecológica.
Eis o dado que poucos querem admitir: quando o tema é a grande crise ambiental do nosso tempo, quem abre o caminho não são os tecnocratas, nem os burocratas – são os religiosos.
Isso não é coincidência. A religião sempre foi linguagem mobilizadora. Sempre deu sentido ao que parecia apenas dado técnico ou estatístico. E aqui mora a ironia: até o Instituto de Estudos da Religião (Iser), assumidamente de viés progressista, reconhece que a fé é protagonista na sociedade brasileira. Ou seja, nem os setores mais vinculados à esquerda conseguem negar a centralidade do fenômeno religioso.
Essa constatação, por si só, destrói a tese de que a religião deve ser relegada ao espaço privado. Religião move pessoas, move instituições, move agendas e constrói civilizações. E, no Brasil, onde a Constituição de 1988 consagrou o modelo de laicidade colaborativa, isso não é ameaça: é vocação institucional.
Laicidade colaborativa significa que o Estado e a religião não se confundem, mas colaboram entre si. Reconhecem-se mutuamente em suas ordens distintas e atuam em prol do bem comum.
Pois bem: se a fé está presente em tudo, se até o Iser admite sua força, onde está o problema? O problema não é a presença da religião no debate ambiental. O problema é a seletividade dessa presença.
A reportagem oficial sobre a vigília da COP 30 abriu espaço para várias tradições religiosas, mas silenciou justamente a maior delas: o cristianismo. Onde estavam os evangélicos? Por que nenhum representante do catolicismo foi ouvido?
Como explicar a ausência da fé que, além de ser maioria inconteste da população brasileira, carrega em sua própria teologia uma visão elevada da criação – não como fruto do acaso, nem como simples recurso a ser explorado, mas como dádiva do Criador confiada ao ser humano para ser cultivada e guardada?
Para o cristianismo, cuidar da terra não é moda. É mandamento. A Bíblia abre em um jardim (o Éden) e fecha em um jardim restaurado (a Nova Jerusalém). No meio dessa narrativa, o homem recebe de Deus a ordem de cultivar e guardar. É impossível falar em ecologia sem falar dessa base espiritual, que molda há séculos a consciência de milhões de brasileiros.
Ignorar esse fato não soa como mero descuido jornalístico, mas como um movimento à moda francesa, daquele mesmo que denunciamos no início deste texto. Não se trata de abrir espaço para religiões minoritárias – o que é legítimo e necessário numa democracia plural —, mas de calar deliberadamente a fé majoritária.
Aqui está o ponto: religião no espaço público já é um dado. O que se discute é quem pode ocupar esse espaço. E, aparentemente, no atual governo, todos podem – menos os cristãos. Esse é o tipo de distorção que nossa teoria da laicidade colaborativa combate. Um Estado verdadeiramente laico não exclui; reconhece, respeita e dá igual consideração a todos, inclusive à fé que molda a maioria de seu povo.
O paradoxo da COP 30 é revelador. Todos falam em floresta, mas silenciam a voz daqueles que veem a floresta como parte da própria Revelação divina. Todos pedem consciência ecológica, mas calam a tradição que, desde o Gênesis, proclama o cuidado com a criação.
A pergunta, portanto, é direta: que medo é esse de ouvir os cristãos?
A laicidade colaborativa brasileira, consagrada em nossa Constituição, não teme a religião. Pelo contrário: sabe que, sem ela, a vida pública fica mais pobre, mais frágil e menos humana.
Ignorar o cristianismo, nesse contexto, não é apenas injusto; é antidemocrático. E, convenhamos, a floresta agradeceria se houvesse menos silêncio ideológico e mais pluralidade de vozes.
Publicado originalmente na Gazeta do Povo.
Autores: Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina
