Publicado originalmente na Gazeta do Povo.
Vivemos dias difíceis e impensáveis na República brasileira. O Congresso Nacional parece cada vez mais impotente. Isto é, além de impensável, assustador. A execução do orçamento é redesenhada por decisões monocráticas de ministros do STF; medidas legislativas são anuladas ou reinterpretadas, inclusive em matéria tributária! Essas e muitas outras decisões nos recordam um episódio histórico ocorrido na Inglaterra, no século 17, quando a voz do Parlamento também foi silenciada pelo tirano poder central.
Em 1629, o rei Carlos I decidiu fechar o Parlamento e governar sozinho – antecipando, em certa medida, o que seu colega de trono faria na França algumas décadas depois: em 1655, Luís XIV, o Rei Sol, declarou diante do Parlamento francês: “L’État, c’est moi”, “o Estado sou eu”. Curioso é que o francês pareceu não ter aprendido nada com o destino de seu colega britânico, decapitado em praça pública em 1649 justamente por ignorar os limites do poder.
Carlinhos – quer dizer, o rei Carlos I da Inglaterra e da Escócia – decidiu, em 1629, que pedir licença ao Parlamento era uma “formalidade” incômoda. Convenhamos, ele estava apenas seguindo a tradição familiar. Carlos chegou ao trono como herdeiro de seu pai, Jaime I, o primeiro rei da dinastia Stuart, que não era inglesa, mas escocesa. Após a morte da rainha Elizabeth I, a famosa “Rainha Virgem” (sem marido, sem filhos e, ao que tudo indica, sem paciência para sucessores), a dinastia Tudor terminou. Para evitar o caos sucessório, os ingleses convidaram o rei da Escócia para assumir a coroa, unificando as duas coroas sob um mesmo soberano e dando origem ao que mais tarde se tornaria o Reino Unido.
Jaime I nunca escondeu seu desprezo pelas limitações impostas pelo Parlamento. E Carlinhos (que os ingleses chamam de Charles), seu filho, não só herdou o trono; herdou também a alergia ao contraditório. Estava decidido a governar como bem entendesse, ignorando antigos pactos, aumentando impostos sem consulta, perseguindo opositores e muito mais. Era o começo de uma tempestade institucional que, como sabemos, terminaria com a coroa no chão e a cabeça no cesto.
Em 1642, começou a derrota final do absolutismo na Inglaterra. E nasceu, de forma concreta, a ideia moderna de que todo poder, para ser legítimo, precisa se submeter à lei – e ao povo
Carlinhos fechou o Parlamento e passou a governar sozinho. Seus métodos eram velhos conhecidos do absolutismo: atropelar liberdades básicas e empurrar sua vontade goela abaixo. O que ele talvez não soubesse – talvez por ser escocês, talvez por pura arrogância mesmo (e qualquer semelhança com algum protagonista do dia é mera coincidência) – é que a Inglaterra já havia mudado. Desde a Magna Carta de 1215, assinada por João Sem Terra sob a firme pressão dos barões, o país reconhecia um princípio fundamental: nenhum tributo poderia ser criado sem o consentimento dos representantes do povo. Carlos ignorou isso solenemente. Acendeu o pavio da crise e dobrou a aposta. Parecia não estar nem aí para a explosão.
Ali, em 1642, começou a derrota final do absolutismo na Inglaterra. E nasceu, de forma concreta, a ideia moderna de que todo poder, para ser legítimo, precisa se submeter à lei – e ao povo. Londres foi tomada pelas tropas do Parlamento; Carlinhos fugiu às pressas para o palácio de Hampton Court e, depois, para Windsor. Mas já era tarde. As armas falaram. Sete anos depois, em 1649, Carlos I foi julgado por traição – e, desta vez, com justiça: ele havia deliberadamente desconsiderado os princípios constitucionais ingleses em vigor desde a Magna Carta de 1215. Condenado, foi decapitado em praça pública. A cena chocou a Europa, ainda habituada a ver o rei como ungido de Deus, inviolável e acima dos mortais. Seria o fim da monarquia absolutista? Não exatamente.
O gesto precipitou uma crise institucional que mergulhou o país em guerra civil. O rei tinha sido decapitado e, como o poder não deixa vácuo, Oliver Cromwell inaugurou uma república – ao menos no nome. Na prática, Cromwell governou com mão de ferro, dissolveu o Parlamento quando este se opôs a ele e acumulou poderes como “Lorde Protetor”. O sonho republicano logo revelou um novo tipo de absolutismo, agora sob bandeira puritana.
Após a morte de Cromwell, em 1658, o sistema ruiu. Em 1660, a monarquia foi restaurada com Carlos II, filho do rei decapitado. Inicialmente moderado, logo o novo monarca demonstrou as mesmas tendências autoritárias: perseguição política e dissolução do Parlamento. Com sua morte, em 1685, o trono passou ao irmão Jaime II, que tentou impor sua fé e sua vontade por decreto – e não fez nenhuma questão de disfarçar sua vocação autoritária. Centralizador, Jaime tentou impor seus dogmas católicos (em uma nação de maioria protestante) e decisões de cima para baixo, como se os últimos 70 anos de luta institucional nada significassem.
Foi a gota d’água. O Parlamento reagiu e, depois de idas e vindas, ocorreu a Revolução Gloriosa – um momento decisivo para a consolidação do Estado de Direito, da separação de poderes e da limitação do absolutismo. O Parlamento convidou Guilherme de Orange (um holandês; seria outra coincidência?) e sua esposa Maria Stuart (filha de Jaime) para assumirem o trono, desde que aceitassem os termos do Bill of Rights de 1689: um documento que limitava o poder da Coroa, consagrava o papel do Parlamento e reconhecia direitos civis fundamentais. A Revolução Gloriosa ocorreu sem sangue, mas foi repleta de consequências – inclusive para a monarquia constitucional inglesa.
Mais do que uma disputa entre reis, deputados e o povo, o que estava em jogo era a definição de um princípio que ecoaria pelos séculos seguintes: nenhum poder pode ser absoluto – nem o do rei, nem o do general, nem o do juiz. O poder precisa de limites, de leis e de equilíbrio, porque “o poder corrompe, mas o poder absoluto corrompe absolutamente”, como afirmou Lord Acton.
A separação entre os poderes, sistematizada mais tarde por Montesquieu, foi aqui gestada, em meio à arrogância da dinastia Stuart. E, sem a separação dos poderes, os direitos humanos como conhecemos – liberdade de expressão, religiosa, política, acadêmica, artística, econômica – nem sequer existiriam.
Nenhum poder pode ser absoluto – nem o do rei, nem o do general, nem o do juiz. O poder precisa de limites, de leis e de equilíbrio
Por isso, quando hoje se discute o papel do Legislativo, não se pode aceitar o avanço do Poder Judiciário ou do Executivo sobre suas prerrogativas, mesmo (ou especialmente) quando isso é feito em nome de uma “boa causa”. Nesses momentos, vale lembrar a postura corajosa de William Lenthall, presidente da Câmara dos Comuns, que enfrentou o tirano Carlinhos quando este invadiu o Parlamento britânico, em 1642, para prender cinco deputados – acusados, claro, de “alta traição”, mas, na prática, perseguidos por suas palavras e votos. Diante da Coroa, Lenthall manteve-se firme e declarou:
“Se for do agrado de Vossa Majestade, não tenho olhos para ver nem língua para falar neste lugar, senão como a Câmara se dignar a me dirigir.”
Era o Parlamento reafirmando sua autonomia – e a ideia de que nenhum poder pode esmagar o espaço da representação popular. Mas será que aprendemos essa lição?
Quando vemos, hoje, parlamentares brasileiros sendo punidos pela Justiça simplesmente por falarem – como no caso do deputado Daniel Silveira, condenado com pena maior que a de homicídio por suas palavras –, ou quando testemunhamos o silenciamento de deputados e senadores por decisões judiciais que atropelam o regimento da casa legislativa, a pergunta que se impõe é: para que serve o parlamento? Se não se pode mais falar ali, se não há mais imunidade ou prerrogativa de opinião, então já não se trata mais de um poder, mas de um ornamento institucional. Voltamos ao absolutismo?
O parlamento é o escudo da sociedade contra a tirania. Quando ele se enfraquece, o poder se concentra – e, concentrado, oprime aqueles que não fazem parte da “corte”
A frase de Lenthall está ecoando, sufocada, pelos corredores do Congresso brasileiro. E talvez o silêncio de hoje seja ainda mais ensurdecedor que o barulho das espadas do século 17.
Foi o fortalecimento do Poder Legislativo que permitiu, ao longo da história, a consolidação dos direitos humanos no seio da sociedade ocidental. A liberdade de expressão, a liberdade religiosa, o direito de resistência, o devido processo legal – todos esses valores nasceram ou foram protegidos sob o guarda-chuva do parlamento, a única instituição capaz de representar o povo diante dos excessos da Coroa (o Poder Executivo), do Exército (o poder militar), do juiz (o Poder Judiciário) ou do clero (em teocracias como as islâmicas).
O parlamento é o escudo da sociedade contra a tirania. Quando ele se enfraquece, o poder se concentra – e, concentrado, oprime aqueles que não fazem parte da “corte”. O cidadão comum, o que pensa diferente, o que ousa criticar, logo se torna inimigo do Estado. Foi assim no século 17. É isto que estamos, inacreditavelmente, vendo hoje no Brasil.
Se quisermos viver em uma República verdadeiramente democrática, e não em uma encenação institucional em que tudo gira em torno da vontade de um grupo oligárquico, precisamos, com urgência, fortalecer o nosso parlamento. Sem ele, não há democracia – e os direitos humanos se tornam um discurso vazio na boca de tiranos “bem-intencionados”, que estão matando justamente a democracia que afirmam querer salvar.
Escrito por: Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina.
