O funeral do papa Francisco reuniu, em Roma, nada menos que 170 chefes de Estado e de governo. Um número impressionante mesmo para funerais de figuras históricas. Mas, quando é o bispo de Roma quem morre, as engrenagens do mundo param por um instante – e prestam continência.
A cena é reveladora: em pleno século 21, sob o signo da secularização acelerada e do cansaço das instituições, o ocidente civilizacional se curva diante do sucessor de um pescador galileu crucificado de cabeça para baixo. Não há César, Napoleão ou presidente americano que tenha conseguido tal feito.
Essa presença esmagadora de líderes mundiais ao redor do caixão do papa revela mais do que respeito diplomático. Expõe o vigor de um dos maiores instrumentos de soft power da civilização ocidental: a fé cristã. Especialmente em sua expressão católica, o cristianismo construiu um corpo simbólico e institucional que atravessou impérios, guerras, reformas e revoluções. Os imperadores romanos que esmagaram os primeiros cristãos jamais poderiam imaginar que, 2 mil anos depois, os seus herdeiros políticos compareceriam em massa e fariam fila para honrar o bispo de Roma – o mesmo que outrora perseguiram como sendo um inimigo do Estado.
Em pleno século 21, sob o signo da secularização, o ocidente civilizacional se curva diante do sucessor de um pescador galileu crucificado de cabeça para baixo
Simão Pedro, cuja tumba repousa sob o altar da basílica que leva seu nome, foi condenado à cruz por ordem de Nero. Hoje, os restos de Nero jazem esquecidos. Já Pedro, mesmo com todas as contradições humanas de seus sucessores, permanece como figura central da consciência ocidental na mesma Roma que fora a capital imperial. A Igreja que ele liderou sob perseguição do poder e do cinismo da história se tornou, paradoxalmente, uma das vozes mais ouvidas nas questões morais, políticas e culturais globais.
E isso não se explica por exércitos ou arsenais. O poder da Igreja – ou poder religioso – não é coercitivo, mas civilizacional. Sua influência se dá pelo testemunho, pela narrativa, pela permanência; pelo modo como moldou o calendário, os ritos, o direito, a arte, a consciência. É o triunfo de uma forma de autoridade que atravessa os séculos não por imposição de força, mas por conta do escândalo da cruz. E, ainda que a instituição muitas vezes tenha se desviado de sua vocação espiritual, é justamente sua capacidade de retornar às fontes que a mantém influente.
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Posteriormente, o cristianismo protestante também contribuiu de maneira decisiva com essa força civilizatória, ao renovar o ímpeto das consciências e fortalecer a liberdade de interpretação, fundando na Reforma um novo modelo de relação entre o sagrado e o secular. A própria ideia de liberdade religiosa, tão cara ao Ocidente, encontra no protestantismo um aliado fundamental, e fertilizou o solo jurídico das democracias liberais modernas. Mas o papado, com sua simbologia milenar, oferece algo que nenhuma outra instituição conseguiu: continuidade.
A história da Igreja não é uma linha reta. É feita de concílios e cismas, de mártires e inquisidores, de monges que preservaram a cultura no caos e de bispos que se dobraram ao poder. Mas é também uma história de resistência espiritual, de papas que enfrentaram imperadores, de reformadores que chamaram a Igreja ao arrependimento, de concílios que redefiniram a ortodoxia com precisão jurídica e teológica. Há joelhos dobrados e multidões em silêncio. Há Bento renunciando com humildade e João Paulo II sendo velado por reis e pobres com o mesmo respeito. Agora, há Francisco, cujo funeral transformou Roma novamente no centro do mundo.
O papado, com sua simbologia milenar, oferece algo que nenhuma outra instituição conseguiu: continuidade
Em um mundo onde tudo parece efêmero, o fato de um só homem, ao morrer, reunir em silêncio líderes das mais diversas ideologias e credos, é um sinal dos tempos – mas também dos fundamentos. O Direito Religioso, que estuda precisamente os limites e os encontros entre fé e poder, nos mostra que esse tipo de influência não se sustenta por decreto, mas por presença histórica e relevância espiritual.
Quando os livros de história forem lidos à distância de séculos, é possível que os nomes dos governantes presentes ao funeral do papa sejam esquecidos. Mas o ato da presença – o gesto de reverência à cátedra de Pedro – continuará dizendo muito sobre o que realmente move o mundo. Porque, como ensinava Francisco, o Evangelho não precisa de marketing, mas de testemunhas.
Pedro venceu Roma. Mas não como Roma esperava. Venceu com o escândalo da cruz e a tolice da fé. Um escândalo que, dois milênios depois, ainda faz reis e repúblicas curvarem suas cabeças e dobrarem seus joelhos.
Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
